Quem não conhece a sensação de que falta algo para ser feliz? Um sentimento de estar suspenso, à espera de poder se soltar e sentir um grande alívio. É como se nos faltasse uma longa expiração, capaz de nos relaxar a ponto de nos sentirmos profundamente enraizados, seguros em nosso mundo interior.
Falando assim, pode até parece que o sentimento de completude seja semelhante ao processo da morte: afinal, se não fosse mais preciso nos esforçarmos para ir atrás de nada, poderíamos nos entregar e nos sentirmos completos, como uma missão cumprida com um final feliz.
Escutei de um paciente que tentou se suicidar que esta era sua intenção – finalmente se entregar, mas que conforme começou a sofrer viu logo que as coisas não eram bem assim... pois a sua angústia continuava presente durante toda sua tentativa de morrer.
A morte nas telas do cinema muitas vezes é mostrada assim: após um longo suspiro, a pessoa morre como se entrasse suavemente num sono profundo, onde, finalmente, estivesse em paz.
Em nossa sociedade cristã, associamos a morte à paz eterna. Esta é uma visão que pode nos ajudar a aceitar nossa própria morte e a daqueles que amamos. Mas, este não é o ponto sobre o qual iremos nos apoiar nesta reflexão. Pois, para muitos, estar diante do processo de morte é uma vivência de entrega sofrida, onde soltar-se é uma experiência tão desconhecida quanto a de se sentir completo e satisfeito. Gangchen Rinpoche certa vez nos falou sobre este sentimento de incompletude: Frequentemente, sentimos falta de algo quase imperceptível, algo que não é mental, intelectual.
Até mesmo nas situações privilegiadas, em que pensamos estar satisfeitos, logo surge esse sentimento sutil de que algo nos falta. Temos, então, a prova de que a vida material não é suficiente, e saímos em busca de algo mais espiritual.
Esse algo que nos falta é tocar nosso próprio potencial de paz. A paz, segundo o Budismo, é uma manifestação natural da mente, por isso encontra-se sempre pronta e disponível.
Os mestres budistas nos estimulam a compreender que aquilo que estamos procurando fora de nós se encontra em nosso interior. Neste sentido, procurar a paz fora de nós pode nos levar para mais longe dela. É como se nos desesperássemos para chegar a algum lugar, quando não há lugar nenhum para ir.
A paz não é algo que podemos compreender com um raciocínio lógico, isto é, por meio de conceitualizações. Por isso, não é possível idealizá-la, apenas reconhecê-la. A boa notícia é que não precisamos mais esperar por algo que nos fará finalmente inteiros e felizes.
Para tanto, podemos desde já reconhecer os estados de calma de nossa mente como nosso melhor patrimônio. Lama Gangchen nos lembra: Nosso problema é que não sabemos reconhecer a positividade.
Primeiro, é preciso reconhecer a paz interna, para depois desenvolvê-la, senão a perderemos novamente. Este é o primeiro passo: reconhecer a presença de uma mente satisfeita. Podemos começar apenas identificando este estado mental no momento em que vamos dormir, quando aliviamos a sede ao tomar um copo d´água, quando refrescamos o corpo quente com um banho de água fresca, quando nos sentimos em sintonia com o olhar de uma outra pessoa, com a cena de um filme ou com nossa própria respiração.
Pode parecer simples demais, mas a lógica do Budismo é bem clara: o efeito dos estados mentais é semelhante àquele cultivado. Ou seja, só paz gera paz. Neste sentido, a insatisfação em si nunca pode se tornar satisfação, assim como a tristeza não se transforma naturalmente em felicidade.
Por isso, Lama Yeshe nos fala: Não podemos esperar atingir nossa meta de felicidade universal e completa ficando sistematicamente mais tristes. Só com o cultivo, hoje, de pequenas experiências de calma e satisfação, é que seremos capazes de atingir nossa meta última de paz e tranqüilidade no futuro. Ao aprender a reconhecer nossa mente de paz e satisfação estaremos treinando a confiança em nosso potencial de entrega e relaxamento. Quem sabe assim, estaremos também mais preparados para aceitar o processo da morte como uma experiência de grande relaxamento!
Bel Cesar é terapeuta e dedica-se ao atendimento de pacientes que enfrentam o processo da morte. Autora dos livros Viagem Interior ao Tibete, Morrer não se improvisa, O livro das Emoções e Mania de sofrer pela editora Gaia.
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