quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Escritos e Parábolas para a Paz


Invoquem a paz sobre Jerusalém

que sejam pacíficos aqueles que te amam

que a paz venha para os teus muros

que sejam pacíficas tuas casas

pelo amor dos meus irmãos, dos meus amigos

deixe-me dizer, paz sobre ti

por amor da casa de YHWH

“Aquele que era, que é e que vem”,

oro pela tua felicidade!” (Salmo 122)


Qual é esta paz que “aqueles que amam” invocam sobre Jerusalém e sobre o mundo?

Que eles próprios sejam pacíficos, essa é sem dúvida a primeira condição para que se realize, já no seu próprio corpo e no seu próprio espírito, a paz que eles desejam a todos.

A palavra hebraica “Shalom” deriva de uma raiz que designa o fato de estar intacto, inteiro; estar em paz é estar “inteiro”, nós não estamos em paz porque não estamos inteiramente aqui... Qual é a parte de nós mesmos que nos falta, que está esquecida ou reprimida – o que nos impede de estarmos em paz?

Perceberemos que quando somos amorosos, somos mais “inteiros”, o amor nos une, nada mais nos falta em nós mesmos, tudo está “voltado para” o Outro.

O mandamento ou o exercício (mitzvot) proposto pela Escritura é um exercício terapêutico, cujo fruto é o de nos fazer “Um”, corpo, coração e espírito, portanto, estarmos felizes e em paz:

“Tu amarás “Aquele que era, que É e que será” de todas as tuas forças, de todo teu coração, de todo teu espírito e tu amarás teu próximo, aquele que era, que é e que será como a ti mesmo, tal qual tu eras, tu és e tu te tornarás...”

A paz abrange todos os tempos. Será que podemos estar em paz com o nosso presente, se não o estivermos com o nosso passado? Será que podemos estar em paz com “aquilo que será”, com “aquilo que virá” se não estivermos em paz com o nosso presente?

A paz designa “o bem-estar do ser” e particularmente do ser humano que vive em harmonia com ele mesmo, com Deus, com os outros, com a natureza, suas sombras e sua luz... Na Bíblia, “estar em boa saúde” e “estar em paz” são duas expressões paralelas; para perguntar como vai alguém; se ele está bem, dizemos: “ele está em paz?”.

Dizemos que Abraão morreu numa idade avançada, feliz e saciado de dias, que “ele se foi em paz”. Também dizemos do nosso namorado que ele é “o homem da minha paz”. A paz é, então, uma confiança mútua, que torna possível a vida em comum e a fraternidade; sem esta paz e esta confiança entre nós, não há comunidade humana ou futuro possível.

Todos os bens materiais, afetivos, intelectuais e espirituais que nós podemos nos desejar uns aos outros estão resumidos nesta simples palavra: Shalom, Salam (em árabe), Bom dia – a paz esteja contigo, em ti e entre nós...

Quando Jesus diz a alguém no Evangelho “Shalom”, é realmente uma “saudação”, uma “salvação”[1], uma cura. Quando ele diz à mulher hemorroíssa: “Vá em paz”, ele lhe devolve a saúde. Da mesma maneira àqueles que se afastaram de diversas maneiras, quando ele lhes diz: “Vá em paz”, eles têm o coração, o corpo e o espírito lavados da sua culpa, eles podem realmente se recolocar a caminho e ver “todas as coisas novas”.

Mas Jesus precisa que a “Sua paz, Ele não a dá como o mundo a dá”. Ela não é um tranqüilizante, um sedativo, que livraria os humanos das provações e das contradições do Real.

Jesus inscreve-se assim na linhagem dos antigos profetas que denunciam “as falsas pazes” e as falsas seguranças que são buscadas em outro lugar e não n’ “Aquele que era, que é e que será”, seu fundamento – aí estão as pazes ilusórias e mentirosas e ele vem nos libertar das nossas ilusões e das nossas mentiras.

Estar em paz é não ser parvo e acreditar-se invulnerável. O Dom da paz supõe uma metanóia, uma transformação da sua vida e da sua maneira de ser e de pensar; Miquéias, Jeremias denunciava assim os falsos profetas que têm apenas a palavra “paz” na sua boca e a ambição e outras vontades de poder no coração: “Eles curam superficialmente a chaga do meu povo dizendo “Paz, Paz” e, no entanto, não existe paz”. (Jr 6, 14)

Jesus será ainda mais radical quando ele dirá: “Penseis que vim trazer a paz sobre a terra? Não, mas o conflito. (polémos, em grego)” Isso quer dizer que se não reconhecermos nossas alteridades, e esse reconhecimento passa às vezes pelo conflito, não há paz verdadeira (particularmente no seio de uma mesma família onde a diferenciação, do pai e do filho, da mãe e da filha é por vezes difícil). A paz não nos deixa tranqüilos, pois se quisermos “permanecer inteiros” e verdadeiros, face ao outro e respeitá-lo na sua inteireza e na sua verdade, isso nem sempre acontece sem que haja um enfrentamento, é preciso amar o outro o suficiente para não ter medo de desagradá-lo e nos amar o suficiente para nos fazer respeitar na nossa identidade. Se o verdadeiro amor é sem complacência, a paz verdadeira é sem compromisso.

Ezequiel também não deixará de gritar: “Chega de remendos! O muro deve tombar” (Ez 13), mas quando os muros do medo, da vaidade, da ilusão e das mentiras desabarem, uma verdadeira paz será edificada.

Eu sei, eu, “Aquele que era, que é e que será”, que tenho sobre vós um desígnio de paz e não de infelicidade” (Jo 29, 11). Isaías e Zacarias sonham com o “príncipe da paz” (Is 9, 5 /Za 9, 95) que dará uma “paz sem fim”, “é ele que estará em paz” (Mi 5, 4), as duas terras separadas se reconciliarão, as nações viverão em paz (Is 2, 2).

“Farei correr sobre Jerusalém como um rio...” Enquanto aguardamos, “Bem-aventurados os “artesãos” da paz”. A paz é um “artesanato” e não uma indústria. A diferença entre o artesão e o operário é que o artesão realiza um objeto, uma obra na sua “inteireza”, ele trabalha nela do início ao fim. Aquilo que se rouba do operário que trabalha na produção em cadeia é o acesso ao objeto na sua inteireza.

Assim, ser “artesão” da paz é tentar viver, nem que seja apenas uma única relação na sua inteireza, da maneira mais verdadeira e pacífica que possa existir.

Jesus pede que façamos a paz, que amemos o próximo, o mais próximo e não que façamos a paz e amemos “a humanidade”, “o mundo”. A palavra “paz”, os discursos sobre a paz não fazem de nós “artesãos da paz”, mas ideólogos, discursistas, pretensiosos pretendentes à paz, “mas a paz não existe...”

A questão, então, para aquele que, em Jerusalém ou em qualquer outro lugar, queira conhecer a felicidade dos artesãos da paz, não é mais: “O que é a paz?”,mas: “Quem é o meu próximo?”. Basta, então, termos olhos e “vermos” qual relação muito concreta devemos “apaziguar”, compreender e “reconciliar”... Isso começa, sem dúvida, em nós mesmos. Enquanto não tivermos feito a paz entre nossos diferentes quarteirões (cabeça – coração – ventre), não haverá paz entre os diferentes quarteirões de Jerusalém.

Encontre a paz interior” dizia São Serafim de Sarov, “e uma multidão será salva ao teu lado.”

É sempre pelo mais próximo que devemos começar, é o primeiro passo de todos os caminhos que conduzem à paz.

Nunca vou muito longe

Para encontrar a paz

Basta uma flor no meu jardim

Ela não me coloca questões

Ela não me pergunta por quê

Todos os homens que têm uma flor no seu jardim

Não olham a flor

E não estão em paz

* * *

A calma das árvores queimadas pelo sol

ou arrancadas pelo homem é sempre calma

a calma das árvores sacudidas pela tempestade surpreende:

uma floresta de calma

Essa calma é também a do homem

é até mesmo o segredo da sua vida

mas só vemos as tempestades

o sol e o vento

só ouvimos o barulho que ele faz

jamais o silêncio que ele é

ninguém consegue imaginar o que seria uma cidade

se ela fosse habitada por homens que são o que eles são:

uma floresta de calma



Phot Jean-Yves Leloup Jean-Yves Leloup, doutor em Psicologia, Filosofia e Teologia, escritor, conferencista, dominicano e depois padre ortodoxo, oferece através dos seus livros, conferências e seminários um aprofundamento dos textos sagrados, assim como uma abordagem e uma reflexão extremamente ricas sobre a espiritualidade no quotidiano graças à uma formação pluridisciplinar de rara complementaridade. Membro da organização das Tradições Unidas, doutor honoris causa e ciências da Universidade de Colombo (Sri Lanka), Jean-Yves Leloup ensina na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul em diferentes universidades e institutos de pesquisa em antropologia fundamental. É autor de mais de cinqüenta obras, além de ter comentado e traduzido os evangelhos de Tomé, Maria de Magdala, Felipe e João. Ele participa igualmente de vários encontros entre as diversas tradições.


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